sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O Trágico como Remédio para o Niilismo

anjo_tragico A configuração do pensamento trágico nietzschiano, principalmente a partir das considerações de Deleuze sobre a obra de Nietzsche, nos coloca a visão trágica do mundo como um antídoto não-dialético para o niilismo.

O trágico afirma o SER Universal a partir do Devir, afirma o UM a partir do múltiplo, a necessidade a partir do acaso e da aleatoriedade. Não há constituição cosmológica, não há “cosmização” sem pressuposição volitiva de uma força contra o caos, a desordem e a indistinção. No entanto, diferente de postular esse movimento volitivo contra o caos como dialético, ou seja, interrogando o caos para saber uma Verdade e Fundamento a serem descobertos por negação, a tragicidade constrói o fundo e a verdade sob a perspectiva de uma afirmação estética, dialogada afirmativamente entre o Belo e o Útil.

Quando a cosmização é simplesmente reativa, dialética, ela desemboca no niilismo. O trágico sempre será afirmativo e não reativo. O reativo, dialético, é simplesmente conservação de força frente ao inesperado, que precisa do controle e da submissão daquele que é atingido pelo inusitado. O trágico afirma-se na consciência plena do acaso como constituinte da própria realidade e o cosmiza ativamente e não reativamente. O trágico não só afirma a necessidade a partir do acaso, como afirma o próprio acaso; não só afirma a ordem a partir da desordem, como afirma a própria desordem; não só afirma o cosmos a partir do caos, como afirma o caos. Dessa forma afirma o Dever como constituído a partir do Devir, afirmando sobretudo o próprio Devir.

Essa é a grande inversão de Nietzsche, que tira do pensamento qualquer pressuposição de sentido e valor para construí-los (sentido e valor) a partir do jogo de forças visando expansão de potência. A grande denúncia de Nietzsche em relação ao pensamento ocidental está justamente em considerar todo pensamento que pressupõe sentido e valor já uma Vontade de Potência se afirmando como força e moldando os agentes a reagirem contra aquilo que constitui a realidade: a falta de valor em si e sentido próprio.

nietzsch1ppp A ação reativa embrenhada na pressuposição de sentidos e valores constitutivos de um fundamento do real é niilista, estatizante, cheia de deveres e fixada na conservação da predominância da força que institui uma dada situação e, como tudo, não passa de perspectiva. Ela reage contra o niilismo, mas se conspurca em sua raiz mais profunda, já que nega a realidade e a própria vida para fugir. Ou seja, é uma Vontade de Nada (ilusão) contra o Nada real.

Para Deleuze a história e a evolução expressam justamente o jogo dialético entre as forças reativas e o niilismo, já que é a Vontade de Nada que garante a sobrevivência dessas forças. As forças ativas embrenhadas na constatação do trágico e de dentro do próprio trágico, trabalham em outro nível vetorial; em combinação de forças.

 
O Sentido e a Dialética

Deleuze nos diz:

“A história de uma coisa é geralmente a sucessão das forças que dela se apoderam e a co-existência das forças que lutam para delas se apoderar. Um mesmo objeto, um mesmo fenômeno muda de sentido de acordo com a força que se apropria dela.

(…)

O sentido é então uma noção complexa: há sempre uma pluralidade de sentidos — uma constelação, um complexo de sucessões, mas também de coexistências — que faz da interpretação uma arte, “toda subjugação, toda dominação, equivale a uma interpretação nova”.

(DELEUZE, Giles. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro, Editora Rio, 1976, p. 5)

deleuze O tratamento que damos ao Sentido (como direcionamento, télos) nos molda politicamente e eticamente na própria construção da realidade. Conceber um sentido dado ao mundo é proceder conservadoramente na preservação das coisas como sempre foram, pressupondo um télos próprio e um fundamento único. Por isso o conformismo e a postura existencial reativa como modo de ser. É nesse sentido que Deleuze interpreta a genealogia de Nietzsche como a verdadeira crítica; aquela da qual embora tenha sido falada primeiramente por Kant, fracassara em suas mãos. A genealogia não busca, como a crítica kantiana, o fundamento, mas descreve como o que tomamos como fundamento se fez e se consolidou no jogo de forças construtoras do mundo e da realidade.

Não havendo sentido e nem fundamento para qualquer tipo de “conformação”, toda atitude reativa é apenas niilista em sua essência, ou seja, conserva um NADA de SER; uma Vontade de Nada dissimulada em Vontade de Verdade. Sob a perspectiva de Deleuze, o pensamento de Nietzsche pode ser até reconhecido como possuindo uma dimensão dialética, mas vai além dela. Deleuze chega a relega-la (essa dimensão dialética) só na fase inicial de Nietzsche (a do Nascimento da Tragédia).

Em minha opinião Nietzsche pode ser considerado dialético, mas numa postura positiva e não negativa. Está além, sim, inclusive de Hegel e Marx. Nietzsche não promove uma simples inversão como Marx, ele amplia e desvirtua o que se chamou de dialética a uma nova dimensão: ele a transvalora e desconstrói seu fundamento recriando-a. Ou seja, a oposição não concilia o contrário, nem tampouco, como Hegel preconizara, nasce em gérmen da própria tese. Isso acontece porque justamente não há, no pensamento de Nietzsche, o fundamento, nem tampouco a possibilidade de totalização progressiva do conhecimento.

A oposição que Deleuze faz à dialética a partir do pensamento afirmativo da Vontade, parece-me ter a mesma dimensão conceitual da própria crítica da metafísica que Nietzsche faz. Ou seja, a dialética que Deleuze opõe à Nietzsche é um tipo específico de dialética, assim como a metafísica que Nietzsche se opõe e quer destruir é um tipo específico de metafísica. Mas ambas, dialética e metafísica são reconsideradas e sobrevivem na ampliação de seus conceitos a partir do pensamento de Nietzsche.

Deleuze defende seu posicionamento dizendo:

Nietzsche é “dialético”? Uma relação, mesmo que seja essencial, entre o um e o outro não basta para formar uma dialética: tudo depende do papel do negativo nesta relação. Nietzsche diz que a força tem por objeto uma outra força. Todavia, é precisamente com outras forças que a força entra em relação. É com uma outra espécie de vida que a vida entra em luta. O pluralismo tem às vezes aparências dialéticas; ele é seu inimigo mais esquivo, o único inimigo profundo. Por isso devemos levar a sério o caráter resolutamente antidialético da filosofia de Nietzsche.

(idem, p. 8)

Hegel O Trágico como remédio ao Niilismo, em minha opinião, não está na negação dialética nem na negação da metafísica, mas sim na transvaloração do que a tradição definiu como dialético e metafísico, ampliando esses conceitos ao abrigar em seus seios outras perspectivas da realidade, ou seja: a ausência de fundamento último e a transformação pela afirmação e não pela negação.

Portanto, quando Nietzsche nega a metafísica o faz dando um fundamento à realidade: a ausência de fundamento. E quando Deleuze nega a dialética em Nietzsche o faz por desconsiderar como dialético a relação de forças que cria outra força, mas também amplia o conceito de dialética para que ela abrigue a afirmação e a relação de forças, sem necessariamente oposição.

Se formos levar em conta a análise que o próprio Nietzsche faz de Heráclito, penso que seja possível chegar ao pensamento que expresso aqui. Nietzsche cria, em sua interpretação de Heráclito, uma dialética anti-hegeliana, mas não nega o aspecto dialético; antes desconstruindo seu aspecto absoluto legado pela tradição.

“Heráclito exclamou mais alto do que Anaximandro: ‘Só vejo o devir. Não vos deixeis enganar! É à vossa vista curta e não à essência das coisas que se deve o fato de julgardes encontrar terra firme no mar do devir e da evanescência. Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duração fixa; mas até o próprio rio, no qual entrais pela segunda vez, já não é o mesmo que era da primeira vez’.”

(NIETZSCHE, F. W. A Filosofia na Época Trágica dos Gregos. V)

Heráclito de ÉfesoEmbora Hegel se diga heraclitiano é sob a perspectiva de Nietzsche que, ao negar a dialética hegeliana, se resgata um novo conceito de dialética em Heráclito. Deleuze, portanto, está certo em ver Nietzsche anti-dialético, mas acertaria mais, a meu ver, vendo-o subvertendo a tradição dialética de Platão a Hegel e postulando-a sob outra perspectiva, sem negá-la sumariamente. Mesmo assim não há retoques na visão que Deleuze nos desenha.

A dialética como contradição, como oposição, como negatividade, pode ser extirpada de Heráclito na medida em que a palavra “oposto” não é encontrada em nenhum de seus fragmentos (BACHILI, 2003, p. 83), ao passo que é evidente a apreensão do conceito de fluxo e transformação, além do postulado que para o homem “adormecido” não é dado o conhecimento de que Tudo é Um na multiplicidade como é dado ao Filósofo, conforme os Fragmentos 10, 50, 89 e 103 (BORNHEIN, 1967, p. 35).

Logo, a dialética que postulo à Nietzsche é dada por sua leitura de Heráclito de que o fluxo constante das coisas se dê não por oposição de contrários, mas sim por um jogo de forças que confluem na multiplicidade constitutiva da própria realidade: o DEVIR. É uma dialética da complexidade do múltiplo em relação e não de pares de opostos que se fundem em sínteses. Essa idéia é expressa na teoria de forças de Nietzsche, a qual o próprio Deleuze analisa como anti-dialética:

“Em Nietzsche, a relação essencial de uma força com outra nunca é concebida como um elemento negativo na essência. Em sua relação com uma outra, a força que se faz obedecer não nega a outra ou aquilo que ela não é, ela afirma sua própria diferença e se regozija com esta diferença. O negativo não está presente na essência como aquilo de que a força tira sua atividade, pelo contrário, ele resulta desta atividade, da existência de uma força ativa e da afirmação de sua diferença.”

(DELEUZE, Giles. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro, Editora Rio, 1976, p. 9)

Na dialética hegeliana e antes, na própria dialética platônica, o resultado se dá negativamente, pela oposição que leva a outro patamar progressivo e evolutivo. Por isso é possível, em Hegel, postular o fim da História e um Espírito Absoluto. Em Nietzsche, digamos, a dialética se dá pela afirmação da diferença cujas forças em eterna luta não desfaz, mas reafirma para prevalecerem. Na negatividade progressiva da dialética hegeliana postula-se chegar a algo de forma absoluta a partir de um fundamento que é simplesmente um valor imposto como força histórica. E ao último “por quê” tudo se esfacela no vazio de sentido: no niilismo, na negação da força e da vida.

É pela diferença que uma força faz seu objeto de afirmação, diz Deleuze mais à frente. Ela não nega e nem se opõe, necessariamente, à outra força. Ela se afirma pela distinção entre elas. É na diferença que está seu gozo. Deleuze afirma que isso é opor-se a um “não” que caracteriza a dialética, mas insisto que esse “não” caracteriza um tipo específico de dialética que, de fato, está em oposição ao pensamento de Nietzsche.

 

Conclusão

adialetica-gaefke O Trágico como Remédio ao Niilismo pressupõe a transvaloração dos valores contidos nos conceitos tradicionais de metafísica e de dialética, pois parece-me impossível criticar-los de fora deles, mas incluir-se neles ampliando-os e questionando suas validades genealogicamente. Da Metafísica, como busca da fundamentação última da realidade, para negá-la, é preciso postular a inexistência dessa fundamentação. Eis um novo fundamento. Da Dialética, como movimento pesado e negativo que leva ao absolutismo de uma perspectiva e a exclusão do Outro e da diferença, é preciso postulá-la como relação afirmativa da diferença, resolvendo os choques de forma criativa.

A verdadeira inversão dialética não foi feita por Marx, que continua, tal qual Hegel, a colocar a contradição e a oposição no primeiro plano como negação. A verdadeira inversão da dialética foi feita por Nietzsche, que postula a negatividade como produto secundário da afirmação da diferença, que é positiva e afirmativa.

A combinação de forças reativas e o niilismo querem, pela dialética, suprimir a diferença a partir do ressentimento e da opressão moral. É nessa questão que Lacan postula a continuidade existencial do racismo. Vale a pena citar aqui minhas considerações sobre Criar a partir da Diferença feitas no artigo Do Dever em Não Devir publicado no dia 09/01/2010:

“Se a criação é possível a partir da diferença [conforme Deleuze] que nos conspurca na alteridade, nos proporcionando re-elaborações da verdade e do real a partir de encontros fundamentais, há de se esperar um subproduto possível e indigesto disso, como um ônus a ser tratado em separado para que não ocorra: por exemplo o racismo.

As afirmações de Lacan sobre a existência de futuro no racismo estão intimamente ligadas a essas considerações deleuzianas. O extravio do gozo identitário é o terreno da criação. Criamos ou discriminamos, eis nossas saídas éticas. Ou nos tornamos artistas de nossa existência na alteridade, marcando a diferença como mola propulsora da criação, ou nos tornamos racistas e preconceituosos conservando o gozo que situa o Outro radical apartado e discriminado de nós.”

(MIRANDA JR, Gilberto. Do Dever em Não Devir. Filosofando na Penumbra, 09/01/2010)

interbeing-alex-grey Essa dialética negativa, denunciada por Deleuze em sua leitura de Nietzsche, procura o gozo identitário pela eliminação da diferença (muitas vezes pela eliminação do Outro). Ao passo que a dialética da afirmação, que conserva a diferença na positividade, se transforma em terreno criativo e trágico contra o niilismo. Mas corre o risco do subproduto disso: o racismo. É preciso, na multiplicidade, criar forças afirmativas que privilegiem a postura trágica criativa contra a resposta negativa de opressão e discriminação. Até porque a dialética da negatividade procura eliminar a diferença pela eliminação do Outro, moralizando-o e desvalorizando-o a partir do ressentimento e da insanidade com vistas a uma única forma de ser.

Eis talvez o grande dilema do sec. XXI, quando a globalização traz correntes migratórias que incitam a percepção da diferença e o assombro da perda de identidade. Quais as saídas criativas e trágicas para esse dilema? A nossa saída até então foi o niilismo crônico que, dialeticamente, imprime a negatividade e a oposição como saída a um caminho único e teleológico.

Talvez esteja na hora (ou até mesmo já passou dessa hora) de assumirmo-nos em nossas diferenças para, criativamente, escutar o Logos que nos identifica no jogo de forças que compõe a realidade, criando a partir daí novos discursos críticos que desfazem os valores insustentáveis que fundamentam sem propriedade o estado atual das coisas.

Ser Trágico é assumirmos a responsabilidade por nossos sentidos e reafirma-los, mesmo sabendo que sua realização não depende só de nós, mas da composição de forças dentro da multiplicidade fluídica do real. O que não dá é aceitarmos o niilismo e vivermos à mercê da negação sistemática do poder de decisão e posicionamento autônomo. Cuidar do Virtú independente da Fortuna, como diria Maquiavel:

“(…) a fortuna; o seu poder se manifesta onde não há resistência organizada.”

(MAQUIAVEL, O Príncipe, Cap. XXV.)

Diria mais: seu poder reside onde nos seja tirado a capacidade criativa e de superação…

 

Notas e Referências Bibliográficas

BACHILI, Andreas. Filósofos da Antiguidade - Heráclito de Éfeso. Tradução: Lya LUFT. Vol. I. II vols. São Leopoldo, RS: UNISINOS, 2003.

BORNHEIN, Gerd A. Os Filósofos Pré-Socráticos. São Paulo, SP. Editora Cultrix: 1967

DELEUZE, Giles. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro, Editora Rio, 1976.

HERÁCLITO. “Sobre a Natureza.” In: Os Pré Socráticos (Coleção os Pensadores), por José Américo Motta Pessanha (Consultoria), tradução: José Cavalcante de Souza, p. 93. São Paulo, SP: Nova Cultural, 1996

MAQUIAVEL. O Príncipe. in http://www.fae.edu/pdf/biblioteca/O%20Principe.pdf

NIETZSCHE, F. W. A Filosofia na Época Trágica dos Gregos

SOUSA, Péricles Pereira de (2003). Deleuze: do pensamento trágico a uma nova imagem do pensamento em Nietzsche Universidade Federal de São Carlos - Dissertação de Mestrado Other: S725dp

1 comentários:

Jean disse...

Gostei muito do artigo. Creio que o pensamento trágico tem muito a nos ensinar. Fiquei com algumas dúvidas. Uma delas é a respeito do parágrafo final do seu artigo. O que é "responsabilidade" do ponto de vista trágico? O que é culpa? O que é "cuidar da virtù independente da fortuna"? Independente? Pergunto isso porque, segundo penso, o pensamento trágico rejeita a visão metafísica judaico-cristã a respeito da "vontade livre", de um "eu" racional que teria liberdade (e dever) para se impor sobre o corpo e seus outros instintos etc. O que você acha?
Não há uma afinidade entre o trágico e o naturalismo?

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